21 de janeiro de 2008

Do vinho

A propósito de um divertido jantar de amigos, organizado com o propósito de fazer uma prova cega de vinhos tintos, não resisto a reproduzir aqui algumas notas de prova, misturadas com outras retiradas dos artigos “A verdade do vinho”, de António Mega Ferreira – ridicularizando as rebuscadas críticas de vinhos, publicado na NS de 12 de Janeiro –, e “Os vinhos mais interessantes do ano”, de Rui Falcão – publicado no OJE de 12 de Dezembro. O mais engraçado é perceber como os disparates ditos por amadores tanto se aproximam, e confundem, com a mais elaborada literatura vínica, novo estilo emergente entre os críticos de vinhos mais pretensiosos. Seria mesmo um exercício divertido tentar distinguir, entre toda esta adjectivação, aquela que foi por mim anotada, com enorme liberdade poética, aquando da minha prova, da que foi retirada dos artigos de Rui Falcão e Mega Ferreira.
Sobre os aromas podemos falar em “caça mortificada”, “caramelos Logroño”, “campos primaveris do Alentejo”, “morangos de Março”, “olaria”, “mesa de jogo sem cartas”, “palha seca”, “rédeas de cavalo”, “cinza de charuto”, “cardamomo, “Maltesers”, “talo de couve”, “iconografia do século XVII”, “couro limpo”, “selos de correio”, “granito morno”, “sacristia”, “túlipas roxas”, “armário de livros”, “fruta amanteigada”, “sargaço”, “móveis antigos”, “couro seco”, “petróleo”, “polainas húmidas”, “violetas”, “pólvora seca de 1940”, “chumbo”, “penas de faisão”, “cheesecake com compota de framboesas”, “geada de Outono”, “percebes”.
Acerca da cor ela pode ser de “framboesas vermelhas”, “sangue de cobra com mirtilo”, “rubi suave”, “sangue de galinha fresco”, “caneta de feltro Molin rosa em álcool”.
Quanto ao sabor do vinho, ele pode ser de “groselhas verdes”, “taninos secos”, “capilé”, “uva”, “planaltos floridos de Maio”, “frutal”, “manga”, “cerefólio”, “canela e tomate”, ou “áspero com corpo de ginasta rítmica russa”, “denso e impetuoso com marcas de revolução”, “com uma dimensão de veludo”, “com um coração de aço”, “que suaviza e humaniza o núcleo central de fruta madura”, “circunspecto”, ou, o meu preferido, “de enorme profundidade intelectual”.
A ironia de tudo isto é que se está a tornar o vinho como algo tão intelectualizado que qualquer dia é mais importante cuspir depois de bochechar do que realmente beber o vinho. Eu vou preferindo beber o próprio do vinho, sem deitar fora, de preferência de boa qualidade, sem faltas de quantidade e que nos consiga alegrar a alma. E de preferência que não cheire a “suor de cavalo”.